(ahah, encontrei isto no meio da tralha)
O sonho é muito antigo.
Não era fácil contá-lo, sabes? Acima de tudo porque deixava-me quase nua. E naquela altura eu ainda me importava com a minha nudez aos teus olhos.
Não sei porque razões, mas eu ia mudar de casa. Sempre me preocuparam as casas novas, porque achava que nenhuma casa teria o pé alto que desejava. Mas neste sonho era diferente. Amava cada canto da casa que me impuseram. Era forrada de tábua de madeiras cujas margens eram arredondadas, tinha um pátio com um jardim mal nascido e ainda se cheirava o velho limoeiro. Eu estava verdadeiramente completa naquele sítio. Deitava-me nas pedras frias do pátio e a minha pele ficava marcada com milhares de impressões arenosas. Não foi contigo que sonhei. Ainda não tinhas cara. Mas contaram-me que quem antes ali vivia eras tu. E eu corria descalça à procura das evidências. Encontrei gavetas com diferentes tipos de papel e muitos, muitos tubos de tinta.
Foi só isto.
A primeira é um bocadinho de botânica ténue (que eu não gosto de ser confundida com outras), para te dizer o quanto te acho bonita. (Depois de um nosso primeiro encontro ficaste admirada quando te disse que não estava preparada para a tua cara. Não estava.)
A segunda é um dos meus textos favoritos de sempre, para te dizer o quanto és um monstro feio:
O corpo dela era todo errado.
Uma mulher senta-se no escuro de uma sala de cinema e pensa: não estou morta. O escuro de uma sala de cinema adensa as massas corpóreas, atribui-lhes uma espessura irrefutável. Sento-me no cinema com a minha solidão ao lado. A fatalidade da escuridão é esta: não esconde, antes exibe a solidão, e esta é pegajosa e espessa e dura e está colada à pele. E eu, eu estou sentada em cima da minha solidão, a asfixiá-la no escuro, às escondidas. Mas estou imóvel. No meu corpo só os meus fluidos se movem. Fazem movimentos circulares de mim para fora, saem de mim os meus fluidos. Ninguém quer estar dentro do meu corpo. Eu compreendo isso. Um homem não tem fluidos autónomos, é ele quem os expulsa. São governáveis como todas as coisas dos homens. Uma mulher que tem a libido de um homem é uma mulher perigosa: quando come a carne alheia consome-se a si própria em proporções idênticas. Às vezes uma mulher vem-se e chora. O corpo explode duas vezes. O corpo de uma mulher está sempre pronto a estalar e a rachar de uma vez e uma mulher às vezes vem-se e não aguenta e chora e não percebe porque chora, ela não queria chorar, queria rir e dizer palavrões. Às vezes uma mulher vem-se com tanta intensidade que no fim não fica nada. E então uma mulher está sentada com a sua solidão e os seus fluidos e o seu corpo impraticável e não está morta, mas está sentada no escuro com um corpo que expele como quem expulsa e lembra: estás sentada no escuro com a tua solidão irrespirável e quando saíres vai continuar escuro lá fora.
2 comentários:
estou toda envergonhada, julgo que até corei. gosto muito de ti, pázinha. assim que tiver sobrevivido, escrevo-te um comentário digno desse nome.
Então vamos lá. Primeiro, nunca pensei que tivesses sonhado comigo antes de me conheceres. Isso é bonito, mas o meu post deve ter-te traumatizado muito. ehehehe
Depois, adorei essa botânica.
Mais depois, quando disseste que não estavas preparada para a minha cara eu pensei que era por ser grotesca. Afinal não estavas preparada para a minha cara porque esperavas, pelo meu post, que eu fosse grotesca. eheheheheh
Por último, repito que essa citação me deixa muito envergonhada. Ai jesus.
beijos grandes em sua tromba linda.
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