22.3.10

Manhãs líquido

As minhas manhãs em Barcelona têm quase sempre uma luz difusa. Movo-me em ruas tortas onde os objectos são rosados e esfumados. Manhãs licor-melaço. Depois de ir transpirar, o que deteriora ainda mais a minha resistência à luz, vou ao mini-mercado que fica no meu caminho de casa. Àquela hora só há velhos a comprar. Costumam ser sempre os mesmos. Consigo focar as suas caras. Ali no meio há um fantasma, um senhor a quem não consigo olhar na cara. Claro que é para ele que quero olhar. De manhã, compra uma garrafa de whisky, nada mais. Não precisa de nada mais. Está à minha frente na fila para pagar. Sigo-o. Vou atrás dele na rua. Não tenho coragem de o olhar e baixo solenemente a cabeça. Vejo a garrafa entre a transparência do saco de plástico, ainda à luz da minha visão trôpega. Tenho uma vontade enorme de agarrá-lo pelo braço. Caminhar passos sem falar, sem sequer olhar. Entrar na sua casa, sentar todo o meu peso nos sofás de veludo verde-acastanhado. Eu queria sentir o cheiro a bafio, puxar de 2 copos baixos e beber com ele. De certeza que ali estaríamos iluminados pelas frinchas das persianas. No escuro da luz. Na luz exacta dos meus olhos. Seríamos os dois do mesmo líquido, até, por fim, tragar toda a nossa escuridão.
Manhãs licor-ácido.


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2 comentários:

éme disse...

eu não acredito que ainda ninguém comentou isto...

eu comento, então: lindo.
*!

Annie disse...

obrigada