Do fundo do corpo
Não dormia, passava horas e horas à escuta, acabando por distinguir no emaranhado de sons os rumores mais ínfimos, a aranha a tecer a teia ou, ainda mais audível, a luz abrindo caminho a pulso entre a espessura dos reposteiros. O silêncio chegava tarde, perdido na rua o eco dos pássaros derradeiros. Só estão ganhavam relevo aquelas pancadas vindas do fundo do seu corpo. Sempre ali estiveram, mas só nessas alturas surgiam limpas de outros ruídos, cada uma delas com perfil de espada. Até quando iriam durar? Porque chegaria um momento, disso não tinha a menor dúvida, em que o deserto da noite e o silêncio do corpo formariam uma substância única, para sempre inseparável do ardor do orvalho, subindo matinal os últimos degraus.
(Vertentes do olhar, 1984)
Interminavelmente
Entre as quatro paredes da memória acodem ao pátio os fulvos relinchos das éguas- ó manhã, manhã interminavelmente no meu sangue.
Poucas, muito poucas, quase nenhumas palavras são necessárias para trazer esse aroma- os lábios incendeiam-se, era um rapaz que se despia, agonia breve.
Depois do sol era como se nascesse ali- não voltaremos a falar em deserto a propósito do corpo.
(Vertentes do olhar, 6.6.1985)
Com as primeiras chuvas
Abrir as mãos. Como ser o vento fora a maravilha. Acariciar-lhe a crina, a lentíssima garganta. Deixá-lo partir, jovem ainda. Com as primeiras chuvas
(Memória de outro rio, 1976-1977)
Ainda sobre a pureza
Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo de morte é o mais perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e incendiar a cidade.
(Vertentes do olhar, 25.11.1985)
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2 comentários:
Indubitavelmente Génio o Eugénio...
Consideravelmente, tu...
Quando transcrevi estes excertos e reparei que um dos títulos era 'Interminavelmente' lembrei-me imediatamente de ti. Bem, consideravelmente, a tua,
Ana
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