8.5.10

A culpa era deles


Era culpa daqueles vizinhos que se tinham mudado há poucas semanas. Falavam que se fartavam, gritavam, costuravam conversas enquanto comiam palavras que não entendia. Chineses, japoneses, sei lá. Acordavam-me dia sim, dia sim. Começou a ser um hábito. Foi isso... sim, habituei-me aos ecos do edifício. As vozes acorriam e já não estranhava. Aliás, acho que eram felizes assim e eu alegrava-me. E depois havia uma criança,  uma criança com os seus monólogos. Imaginava-a com uma cor púrpura, a puxar as mangas das camisolas sujas pelos braços abaixo, pequenos. Lembrava-me o quanto queria vê-la. Vê-la de verdade, agarrá-la, senti-la contra o meu peito, sentir-lhe o cheiro daquela cor. Construía a sua cor na minha cor. O púrpura da minha cabeça  alastrava-se na minha pele pelas suspeitas sobre aquela gente. Sim, a culpa era deles que se tinham mudado há poucas semanas e sim, eu queria que aqueles olhos rasgados de púrpura, pousassem sobre os meus olhos demasiado grandes, azuis. 
A culpa era deles, deles. Entendem? Vieram as chuvas e lavaram-se os ecos do prédio. Ouvi discussões, gritos, choros. Segunda, sexta-feira. Das primeiras vezes saía de casa a correr e metia-me ao alto com a porta. Passados uns dias comecei a sentar-me nas escadas ao lado da porta. Agachava-me e abraçava os joelhos. Não fazia mais nada. Choros, choros, choros. Gritos, golpes, coisas a partir. Pratos, garfos e os braços púrpura a pedir comida. Eu fora.
Choveu toda a semana sem parar. Choros. 5 da manhã. A mulher abriu a porta. Tinha uma tesoura na mão. Havia manchas de sangue na roupa. Olhou para mim desesperada. Não estava à espera de ver ninguém, claro, fechou a porta de medo. Ouvi-a lá dentro a recapitular desesperos. Já estava  de pé e as minhas lágrimas azuis caiam ao ritmo que batia à porta, incansavelmente. Ela abriu e gritou-me coisas que não entendi. Acho que não me julgava por estar ali. Apertou-me o pulso e olhou-me fixamente. Mantive-me firme e intacta. Foi ao fundo do corredor e pegou na criança. Deu-ma em braços. Atirou-me fora do apartamento e fechou a porta. Era eu e a cor púrpura. Olhos púrpura nos meus olhos grandes, azuis.


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