Era culpa daqueles vizinhos que se tinham mudado há poucas semanas. Falavam que se fartavam, gritavam, costuravam conversas enquanto comiam palavras que não entendia. Chineses, japoneses, sei lá. Acordavam-me dia sim, dia sim. Começou a ser um hábito. Foi isso... sim, habituei-me aos ecos do edifício. As vozes acorriam e já não estranhava. Aliás, acho que eram felizes assim e eu alegrava-me. E depois havia uma criança, uma criança com os seus monólogos. Imaginava-a com uma cor púrpura, a puxar as mangas das camisolas sujas pelos braços abaixo, pequenos. Lembrava-me o quanto queria vê-la. Vê-la de verdade, agarrá-la, senti-la contra o meu peito, sentir-lhe o cheiro daquela cor. Construía a sua cor na minha cor. O púrpura da minha cabeça alastrava-se na minha pele pelas suspeitas sobre aquela gente. Sim, a culpa era deles que se tinham mudado há poucas semanas e sim, eu queria que aqueles olhos rasgados de púrpura, pousassem sobre os meus olhos demasiado grandes, azuis.
A culpa era deles, deles. Entendem? Vieram as chuvas e lavaram-se os ecos do prédio. Ouvi discussões, gritos, choros. Segunda, sexta-feira. Das primeiras vezes saía de casa a correr e metia-me ao alto com a porta. Passados uns dias comecei a sentar-me nas escadas ao lado da porta. Agachava-me e abraçava os joelhos. Não fazia mais nada. Choros, choros, choros. Gritos, golpes, coisas a partir. Pratos, garfos e os braços púrpura a pedir comida. Eu fora.
Choveu toda a semana sem parar. Choros. 5 da manhã. A mulher abriu a porta. Tinha uma tesoura na mão. Havia manchas de sangue na roupa. Olhou para mim desesperada. Não estava à espera de ver ninguém, claro, fechou a porta de medo. Ouvi-a lá dentro a recapitular desesperos. Já estava de pé e as minhas lágrimas azuis caiam ao ritmo que batia à porta, incansavelmente. Ela abriu e gritou-me coisas que não entendi. Acho que não me julgava por estar ali. Apertou-me o pulso e olhou-me fixamente. Mantive-me firme e intacta. Foi ao fundo do corredor e pegou na criança. Deu-ma em braços. Atirou-me fora do apartamento e fechou a porta. Era eu e a cor púrpura. Olhos púrpura nos meus olhos grandes, azuis.
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